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O meu Dante

"O meu Dante": uma homenagem do Brasil a Dante

Prestes a completar 700 anos da morte de Dante Alighieri (1265-1321), focamos nossa atenção sobre uma preciosa publicação de 1965, O meu Dante, um livro publicado naquele ano pelos 650 anos do nascimento do poeta. Trata-se de uma coletânea de dez textos, escritos por algumas das maiores personalidades do Brasil da época, que também foram apresentados em formato de palestra no ICIB-Casa de Dante durante o ano de 1965, por iniciativa do então diretor do ICIB, o professor Edoardo Bizzarri, autor também de um texto do livro, publicado pelo próprio ICIB.

Junto de outras personalidades, a figura de Bizzarri é imprescíndivel para entender o prestígio de que a cultura de língua e tradição italiana gozaram na São Paulo do pós-guerra. Ele orientou a programação das atividades culturais do ICIB de 1948 até 1975 (ano em que faleceu). Grande intelectual, incansável organizador de eventos interculturais e interdisciplinares, amigo de figuras importantes, na Itália, no Brasil, em nível internacional, Bizzarri reconheceu-se e integrou-se de forma significativa na cultura brasileira. Um de seus trabalhos mais reconhecidos é a tradução em italiano de Grande Sertão-Veredas, obra máxima do João Guimarães Rosa, que a considerava a melhor versão em uma língua estrangeira de seu imponente livro, um dos mais importantes da modernidade brasileira.

Como tout se tient, na história de todas as possíveis voltas cuturais de nossa modernidade, esse pequeno, importante, delicioso livro reaparece a tempo, seja para cumprir seu compromisso de continuidade histórica com um novo O meu Dante, contemporaneizado a 2020-2021, que está sendo preparado em vista das comemorações de 2021; seja para homenagear os 75 anos de vida do Instituto Italiano de Cultura/Casa de Dante.

De fato, o Instituto Italiano de Cultura/Casa de Dante foi fundado em 27 de dezembro de 1945, com a précipua finalidade de promover e renovar os laços de intercâmbio cultural entre o Brasil e a Itália, depois do longo período do fascismo e da guerra; e de assumir, no nome do poeta de Florença e da grande tradição humanística italiana, o papel de espaço de encontro entre intelectuais e outros sem discriminações, em que o diálogo e a livre troca das ideias fossem soberanas.

Para dar início aos trabalhos, escolhi apresentar-lhes o texto de Miguel Reale, nas décadas de 50 e 60 professor de Direito de Filosofia da Universidade de São Paulo, Presidente do Instituto Brasileiro de Filosofia, insigne jurista, um dos reformadores do Código Civil Brasileiro. Nascido no Estado de São Paulo em 1910, Reale era filho de emigrantes italianos e mantinha saldos vínculos com suas origens.

O texto do professor Reale, em sua complexidade, nos leva a considerar todo o trajeto da prática de Dante, a partir da própria Itália, terra da família do autor, até o Brasil, país de eleção, com todas as subtilhezas interpretativas possíveis.

Logo ao começar o seu texto, o professor Reale, como se estivesse frente a Minós, juiz infernal, “tutto[a] si confessa” (Inferno, Canto V, v.8): o depoimento que ele vai prestar é uma “confissão sobre o significado de Dante Alighieri em minha experiência pessoal”, pautadas em três principais momentos: a convivência lírica, a de compreensão filosófico-poética, a de meditação filosófico-política.

Três ciclos existenciais precedidos por um limbo, em que a “figura serena’” do pai de Reale (“la cara e buona immagine paterna”; Inferno, Canto XV, v.83) aparece imbuída daquele sentimento “da unidade cívica e da cultura da gente itálica” dos renovadores dos estudos literários da Universidade de Nápoles (Bernardo Spaventa, Francesco de Sanctis, Luigi Settembrini, Giovanni Bovio).

Virando-se diretamente para o Brasil, Reale passa a relembrar de sua experiência no Colégio Médio Dante Alighieri, em que o amor ao poeta florentino vivido em criança teve que começar a conviver com a disciplina “de um internato talhado em moldes antiquos”, em que o Dante da infãncia se transfoma em “um Dante patrioticamente estruturado”, um pouco menos real e prazeroso. Mas o descobrimento de La Vita Nuova, do Dante jovem e apaixonado por Beatriz, marca a passagem para a segunda fase do amore dantesco para Reale. Amore que o levou a compor um soneto em homenagem a Beatriz, imbuído do culto do amor pela mulher amada, e que aparece no texto:

SONETO LER

Em seguida, dando continuidade a esse processo de formação mental, existencial e espiritual, Reale passa a lembrar de como, graças às aulas do professor do Colégio, Francisco Isoldi, os versos de Dante, antes somente apreendidos de cor, “passavam, imperceptivelmente, a fluir espontâneos em nossa sensibilidade, e, ainda hoje, cantam-nos na memória como uma componente de nosso ser pessoal”. A essa altura, Dante já se fez parte integral da formação humanistica do Reale, juntando os estudos de “humanidades” com os das “ciências”.

De fato, o passo sucessivo dessa ‘formação dantesca’, específica, e, ao mesmo tempo, universalmente compartilhada, foi em direção ao aprofundamento da concepção filosófico-teológica e do descobrimento das íntimas conexões existentes entre poesia e filosofia, a à abertura para a política, a partir da leitura das outras obras de Dante, como o Convivio, o De Vulgari Eloquentia, a Monarquia.

O cosmo dantesco revela-se em todas sua grandeza para o jovem Reale, que, adulto, já professor, passa a incorporar Dante em suas aulas de Filosofia do Direito, como “armoniosa composição dos valores da pessoas com os da comunidade que ele realiza”, “como instrumento de vida e convivência.”

Quase que completando um círculo, a “confissão” de Reale conclui-se retomando um dos mais lindos sonetos de Dante, dedicado à amizade (aquela, especialmente, com Guido Cavalcanti, “primo amico” do grupo do Stil Novo):

Guido, i´vorrei che tu Lapo ed io …..

São Paulo, 09/09/20

Profa. Cecilia Casini
Docente de Literatura Italiana da Área de Língua e Literatura Italianas/FFLCH/USP e do Programa de Língua e Literatura Italiana/USP